Chamas Azuis

Ileana não tinha muitas lembranças de sua infância. Com quase 16 anos ela era uma jovem acostumada a mudar constantemente de lugar. Em sua memória poucas imagens de onde passara. Portas de ferro, pessoas sem rosto que a medicavam, roupas de cama limpas e um cheiro cítrico, quase adocicado que desde sempre estava em seu travesseiro e a acalmava.
Estava nesse novo hospital há poucas semanas já que o último foi destruído durante um "incidente". Seu quarto ficava no porão do lugar, uma espécie de área de segurança e isolado por paredes resistentes ao calor. Mas ela não se importava, já estava habituada a ficar sozinha e preferia a solidão ao constante olhar de medo que todos lhe davam.  A maioria das pessoas que cuidavam dela tinham medo. Não sabia o que ela era, nem o que podia fazer. Mas Ileana não tinha respostas e naquela manhã quando acordou sentia algo dentro dela dizendo que aquele dia seria diferente, que algo mudaria. E realmente mudou.
O porão onde ficava tinha uma pequena sala de estar, com um sofá azul marinho, uma poltrona bege e uma TV encostada em um móvel de madeira escuro e antigo. Ileana estava olhando para o aparelho como se assistisse, porém longe e pensativa, quando viu um dos enfermeiros chegar acompanhado de uma criança. Ele era pequeno, de uns 3 anos no máximo e tinha os cabelos avermelhados e olhinhos amendoados. Quando ele chegou, a primeira impressão que ela teve é que seria só mais uma das crianças que eventualmente apareciam ali e que de tão analisadas e medicadas viravam vegetais. Mas ele não. Ele era mais que diferente. Ele era como ela.
Ao questionar os médicos sobre quem era a criança, eles lhe disseram que Téo havia sido achado em um hospital após um grave incêndio. Uma testemunha havia visto chamas estranhas próximas ao local e por isso ele estava ali. Ele seria analisado, como Ileana foi e se tivesse o mesmo "problema", receberia tratamento.
Assim, o quarto onde ficava sozinha recebeu uma pequena cama para Téo e lá ambos dormiram. Ileana sempre sonhava com vultos brancos, que corriam desesperadamente de um lado para o outro, e de repente sentiu aquele calor característico de quando acontecia. Quando abriu os olhos estava envolta em chamas azuis. E o pequeno Téo estava ao seu lado. Ao contrário de todas as pessoas que haviam visto ela assim, o menino não tinha nenhuma reação de medo. Ele, com sua pequena mão de criança entrou no fogo com ela e a abraçou, aninhando-se em seu colo.
E a chegada do pequeno mudou o dia-a-dia de Ileana. O hospital não era mais ruim. O desprezo e medo das pessoas a sua volta não mais a incomodavam. Agora ela tinha o pequeno para cuidar. Sentia-se responsável por ele, mesmo sabendo que as vezes ele que cuidava dela.  E ele não falava, apenas sorria intensamente para ela, através do olhos negros.
Durante uma noite, Ileana acordou e viu Téo envolvido nas chamas azuladas e ao invés dele estar assustado como ela se sentia todas as vezes que isso acontecia, ele sorria, e de suas mãozinhas as chamas transformavam-se em pequenas bolas que ele jogava para os lados.
Confusa, Ileana comecou a questionar os médicos sobre qual era realmente o seu "problema". Porque queimava. E se ela tinha uma "doença", porque uma criança aparentemente normal também tinha? Porém ninguém respondia. Diziam apenas que ia melhorar com o tempo. Cansada de ficar sem respostas, ela foi até o quarto e lá achou uma bolsa aberta do lado da cama de Téo. Lembrou-se que da bolsa no dia que Téo chegou. Dentro dela havia a roupa do menino e um maço de alecrim.
Ilena nunca entendeu como que essa pequena erva ia todos os dias para seu travesseiro, mas o aroma a acalmava e fazia bem. Mesmo sabendo que Téo quase não falava, Ileana perguntou se ele sabia quem havia mexido na bolsa, e o pequeno respondeu apenas "irmão" e apontou para a porta.
Naquela mesma noite, sem conseguir dormir, Ileana agarrou o menino e resolveu que sairia dali e tentaria descobrir a verdade. Porém alguém a impediu. Era um dos enfermeiros do hospital. Nunca havia reparado nele, mas ele a olhava intensamente bloqueando a saída. Quando ela segurou Téo e correu para a saída sentiu mais uma vez o cheiro de alecrim e ao virar viu o enfermeiro olhando-a intensamente com olhos negros que ela conhecia. E então ele queimou. Em altas e fortes chamas azuladas. E Téo correu de braços abertos até ele chamando-o de irmão.

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