Personalidade Quente

Ele ainda podia ouvir os gritos insurdecedores em seus ouvidos. Suas pupilas estavam dilatadas e a respiração tão ofegante que mal o ar entrava em seus pulmões. O que aconteceu? Tudo foi tão rápido, não se lembrava. Ele olhou para os lados procurando algo, porém tudo a sua volta tinha mudado de lugar. Nenhum rosto conhecido. Nenhuma lembrança, apenas a dor que mastigava-lhe os ossos, causando arrepios. Na sua mão direita um risco de sangue descendo pelo punho forçava sua memória a funcionar. Ele estava em algum lugar e algo aconteceu lá, e ele sabia que havia algo, uma coisa que lutava para sair da superfície do esquecimento.

Ele andou, as pernas se movimentavam com dificuldade, chamando a atenção das pessoas próximas. Sua cabeça doía com o esforço em se lembrar. Será que que ele tinha batido a cabeça tão forte a ponto de se esquecer de tudo? Encontrou uma viela e lá deitou. Acordou com a luz do sol futigando-lhe os olhos. O clarão trouxe seu primeiro lapso. Luz! Havia uma intensa luz. Da lembrança o cheiro de ferro retorcido e sangue. Sofrera um acidente? Estava sozinho? Levantou e saiu pela rua, tentando juntar o quebra-cabeças. Em seus bolsos um bilhete. Uma letra redonda e delicada com o recado "Estou te esperando no carro, beijos L". Procurou em seu bolso por mais algo. Um resto de celular estava lá, retorcido e derretido. Resolveu jogar o restante no chão e resgatar o chip, porém ele estava tão destruído quanto o aparelho. Onde estava, quem era "L", o que aconteceu? Achou uma nota de 50 reais e resolveu comer algo. Enquanto andava na rua, reparou que não entendia o que as pessoas falavam. Encostou em um carrinho de cachorro quente e entregou o dinheiro. O rapaz riu e devolveu a nota, com um lanche "Pode comer amigo", ele ouviu em um português com forte sotaque inglês.

Comeu tão rápido que nem sentiu o sabor, o rapaz com dó perguntou-lhe "Como se chama?", ele respondeu entre uma mordida e outra "André". "Eu me chamo Julio". Julio falava o português com bastante dificuldade, porém André conseguiu entender que estava em Londres. Isso o fez ainda mais confuso. Como viera parar ali? Prestou atenção aonde estava, enquanto Julio falava que sua mulher brasileira adoraria conhecê-lo. Conversaram alguns minutos enquanto Julio desmontava o carro de lanche e andava até uma pequena van na rua paralela. Foram para um bairro simples, porém tranquilo. Chegando na casa, uma bonita moça apareceu na porta. Rosto delicado, olhos castanhos brilhantes e cabelo cacheado.

Seu sorriso trouxe-lhe uma dolorida pontada no peito. Algo estava muito errado. Ele tinha feito algo muito ruim. A sensação de esmagamento no estômago quase o fez vomitar, mas a curiosidade era tão intensa quanto a dor. Entraram, a bonita moça chamava-se Milena, e há anos não falava o português. Assim que se apresentaram, Milena viu o corte na mão de André e se ofereceu para fazer um curativo. Conversaram. Ela perguntou como ele viera parar ali, e ele não conseguia se lembrar. Imaginou que tinha batido a cabeça, e lhe ofereceram uma vaga no sofá aquela noite. André pensou que talvez fosse melhor mesmo dormir, talvez quando acordasse se desse conta do que tinha acontecido.

Ao fechar seus olhos, era como se sua garganta fosse virada do avesso. O cheiro doce, a pele macia, os olhos castanhos, os lábios, tudo era convidativo. Tudo lhe chamava a atenção. Agora ele lembrava. Estava com ela. Não se lembrava exatamente do seu rosto, apenas dos olhos castanhos, e do cheiro de seu cabelo. Estava dirigindo, a estrada era escura e os vidros estava abertos, o vento batendo em seu rosto. Viu um caminhão na pista oposta em alta velocidade. Não teve como desviar. Ele virou o carro para seu lado, fazendo o carro girar na pista e capotar na direção do caminhão. Tudo estava em câmera lenta. Os gritos dela. O vidro cortando-lhe o rosto, a cabeça batendo no painel. Rápido. E então foram de encontro a uma grande bola de fogo. O impacto foi intenso, porém o fogo não queimava seu corpo, ele conseguia ver o corpo dela em chamas enquanto sua garganta soltou o nome que ele tanto tentava lembrar "Lilian".

Acordou com o cheiro de gasolina nas narinas, porém algo ainda lhe assustava. Como sobrevivera ao acidente? Como viera parar em Londres? Seu grito acordou Milena que desceu as escadas para ver se ele estava bem. Conversaram e Milena reparou que André estava fervendo em febre e lhe ofereceu uma toalha para tomar um banho. Quando entrou no chuveiro algo muito estranho aconteceu. Sua pele estava tão quente que mesmo com o chuveiro gelado ainda saia vapor de seu corpo. André se olhou no espelho. Seu ferimento estava curado. Sua pele estava brilhante e avermelhada. Ao sair do banheiro, Milena estava lá, esperando-o. Os mesmos olhos, o mesmo cheiro suave. Beijaram-se. O calor do corpo dela misturava-se ao seu, suas boca unidas, o calor, que aumentava, aumentava. O olhar doce mudou para medo. Porém ele não percebeu, a queria para si, puxava-a para seu peito, abrançando-a mais forte. Ele não reparou quando a casa inteira começou a pegar fogo. Nem quando seu corpo foi parar em outro lugar.

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