O barco

Sua pele estava arrepiada. Mas não era frio, muito menos desejo. Era medo. Medo daquele momento em que ela estava vulnerável e distante de qualquer um que pudesse salvá-la. Olhou para a lua refletida na água. A noite estava calma e quente. E ela achava que estava sozinha naquele barco. O que quer que ele quisesse não poderia ser bom. Afinal, alguém que matou tantas pessoas desde que "criado" não poderia simplesmente ter momentos de caridade.

Lembrou-se de quando o conheceu. Gentil e doce, ajudando-a no trabalho, saindo com ela para almoçar, conversando sobre os problemas de casa. Também lembrou-se de após um happy hour da empresa e de ela estar ligeiramente "alegre" por causa de algumas taças de vinho a mais, sentir não só os seus lábios quentes, como todo o seu corpo. Mas no fundo ela sabia que tinha algo errado. O brilho esverdeado de seus olhos não real. Tinha algo diferente naquele olhar. Algo não - humano.

Descobriu ao acaso porque ele a escolhera. Ele precisava de alguém sensível. Alguém que tivesse herdado o dom da premonição, alguém que fosse ingênua o suficiente para acreditar que ele fazia isso apenas por gostar dela. Afinal, sem suas visões, como ele iria conseguir abrir o portal e liberar todos aqueles que haviam sido criados assim como ele, com o propósito de destruir toda a humanidade?

Infelizmente ele não queria só suas visões. Ele queria a carne dela, o sangue e se possível sua alma. Assim o portal nunca mais seria fechado.

Ela havia sido idiota demais para entrar naquele barco. Mas como resistir a fala macia e aos lábios doces dele, chamando-a para conversar? Desde que tinha descoberto o que ele era, e que fugia dele, ele a procurava constantemente. Dizia que havia se apaixonado e que era para ela acreditar nele, que ele não a mataria, que ele queria ficar com ela. Mas que para isso qualquer acesso ao portal precisava deixar de existir, ou ele seria exterminado.

Hoje era o dia ideal para falar com ele. Uma festa de sábado a noite. O clima quente e o barco cheio de pessoas a deixava entusiasmada. Afinal, que mal ele poderia fazer com tantas pessoas em volta? Até porque, pelo que ela sabia, o portal não poderia ser aberto no mar. Portanto esse deveria ser um lugar tranquilo para se saber a verdade.

Colocou um vestido curto e levemente prateado. Os cabelos longos caiam em cachos grossos pelas costas. Entrou no barco da festa, as luzes da decoração deixavam seus cabelos ainda mais dourados e davam aos seus olhos uma tonalidade acinzentada, meio sem vida.

Ele estava lá, no fundo do barco. Os olhos verdes como esmeralda olhavam diretamente para ela. Ele segurou sua mão e ela se sentiu estranha. Mas ao contrário das outras vezes que foi tocada por ele, não era uma sensação boa. De repente, era como se não estivesse mais lá. Suas pupilas dilataram e então ela viu o que aconteceria a seguir. Porém foi tudo muito rápido para ele perceber.

Ele saiu andando na frente dela, indicando um outro barco a frente. Ela o seguiu, sabendo o que iria acontecer e tentando agir ao contrário para evitar que a tragédia que tinha visto acontecesse.

O outro barco estava vazio. Ele aproximou-se dela devagar, tocando-a levemente nos ombros. Sua pele arrepiou-se de medo. E de um dos seus olhos uma lágrima caiu. Ele nunca a amou. Ele queria simplesmente que ela acreditasse nele. Afinal, seria mais fácil para uma alma apaixonada, ter a premonição com o lugar exato do portal. Agora ela sabia, porque tinha visto.

O que ela não sabia, era que aquela visão dela tinha mudado algo no futuro,  e quando ela resolveu chorar alguém que a amava muito, estava lá para dar um fim naquele que um dia, tinha a enganado.


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